Sob sol ou chuva, com a responsabilidade de ajudar a família e com os estudos deixados de lado, milhares de crianças e adolescentes vão às ruas todos os dias em busca de renda. A Consolidação das Leis do Trabalho e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), legislação que protege esse público, são claros ao determinar a proibição do trabalho para qualquer pessoa com menos de 14 anos. A partir desta idade, apenas na condição de aprendiz. Mas os números refletem uma realidade muito diferente: ao menos 1,7 milhão de crianças e adolescentes trabalhavam no Brasil em 2019, dados mais recentes sobre o tema. No mundo, o número é ainda mais alarmante e pode chegar a 168 milhões este ano, segundo estimativa da Organização Mundial do Trabalho (OIT).
Nos campos ou nos centros urbanos, é comum ver a legislação sendo sistematicamente descumprida. Se o Brasil tinha motivos para celebrar a redução do trabalho infantil nos últimos anos, desde 2021 é possível comprovar o retrocesso: foi o ano com o maior número de flagrantes de trabalho infantil desde 2017, com um total de 1.104 casos. Os dados fazem parte do repositório do Ministério do Trabalho sobre o tema. O levantamento também mostra que 1.889 crianças e adolescentes foram resgatados do trabalho infantil no ano passado.
Apesar de os dados serem bem detalhados, há um lapso entre 2019 e 2021, sem informações do período da pandemia de Covid-19. Mesmo com poucos levantamentos oficiais sobre 2020, especialistas, autoridades, educadores e organismos internacionais são enfáticos ao dizer que a pandemia agravou ainda mais a situação no Brasil, com milhares de crianças e adolescentes deixando as salas de aula para trabalhar e ajudar na renda familiar.
Ao longo do último mês, o R7 levantou dados, ouviu personagens, estudiosos, autoridades e foi às ruas para entender a realidade enfrentada por crianças e adolescentes, especialmente os mais pobres. Os relatos mostram o retrato dos jovens que deixaram as salas de aula para trabalhar diante da maior crise sanitária do país.
O relógio marca 11h de uma sexta-feira. Os termômetros mostram temperaturas próximas aos 30ºC e alertas sobre a baixa umidade do ar da capital federal — a seca já começa a castigar em meados de junho. No chão de terra batida onde até 2018 funcionava o Lixão da Estrutural, o maior aterro a céu aberto da América Latina, crianças e adolescentes se arriscam em busca de material que possa ser vendido. Marcos* é um deles. Aos 16 anos, o jovem deixou a sala de aula para ajudar no sustento da casa. Ele mora com a mãe na Cidade Estrutural, uma das regiões mais pobres da capital do país, apesar da proximidade com o Congresso Nacional, a cerca de 15 quilômetros.
“Cansado demais” para conciliar estudos e trabalho, Marcos deixou os livros e a sala de aula este ano e agora se arrisca saltando em caminhões que chegam ao antigo lixão. Em cima dos veículos estão contêineres abarrotados de lixo. Dentro deles, Marcos busca material para vender a ferros-velhos e cooperativas de reciclagem. Em um dia bom, ele consegue R$ 100. A dedicação do jovem foi intensificada nos últimos meses, desde que a mãe ficou desempregada e o sustento vem do que ele arrecada no lixo. Mesmo com toda a abdicação da vida de adolescente, nem sempre o dinheiro é suficiente para comprar “a mistura” para as refeições, ou seja, uma carne ou outra proteína para misturar ao arroz e ao feijão, conta Marcos.
Apesar do trabalho, Marcos conta que “gostava de aprender matemática e inglês”, mas o afastamento dos estudos começou durante a pandemia de Covid-19. Ele fazia aulas on-line, mas só quando conseguia “uns trocados” para recarregar o celular com internet. A volta às aulas presenciais foi determinante para ele abandonar os estudos: “Estava muito cansativo trabalhar e estudar”, conta.
A rotina no espaço que abrigava o Lixão da Estrutural se repete a cada dia. A entrada de pessoas passou a ser proibida e os caminhões chegam ao local carregando apenas entulho, nada de lixo orgânico. Como ainda é possível separar material para vender, Marcos vasculha as caçambas dos caminhões ainda em movimento. Junto com ele, dezenas de adolescentes e crianças pegam o que conseguem.
Na inocência do trabalho realizado por eles, há risadas, brincadeiras e leveza. Por trás de tudo isso, no entanto, há marcas do trabalho. Marcos tem na pele os machucados da queda de um dos caminhões de lixo. “Eu queria fazer outra coisa, mas não tem, né? Queria fazer um curso para ter meu primeiro emprego”, espera o jovem.
Ao lado de Marcos, outro adolescente, de 17 anos, também se arrisca para conseguir materiais recicláveis. Ele deixou os estudos há um ano para intensificar o trabalho no lixão. Junto com eles, também está Roberto*, 9, que tem a missão de vigiar os materiais encontrados pelo pai, de 23 anos. O menino deixou de estudar neste ano, após o retorno presencial das escolas. O motivo, conta o pequeno, é falta de interesse.
A alguns quilômetros do Lixão da Estrutural, em Ceilândia, Joana*, de 9 anos, circula pelas ruas com uma caixa de paçoca embaixo do braço. “Compra uma para ajudar a comprar leite lá para casa”, pede a menina a quem passa por perto. Logo em seguida chega o irmão dela. Aos 4 anos, ele também carrega doces para vender. Equilibra a caixa de paçocas em uma mão enquanto tenta brincar com uma espécie de pião na outra. A avó dos meninos, de 55 anos, também está por perto e cata frutas que seriam descartadas em uma feira de produtores.
A mãe das crianças é diarista e arca com o aluguel, de R$ 700, além do gás de cozinha. A avó trabalhava em uma feira, mas foi demitida no começo da pandemia e, com a idade avançada, conta que não conseguiu outro trabalho. Então, o dinheiro das paçocas ajuda a comprar alimentos para a família, mas nem sempre é possível ter uma refeição completa. “Aí a gente come macarrão, que é mais barato”, conta a avó das crianças.
Joana frequenta uma escola em Ceilândia e acumula os estudos com o trabalho. As pernas, às vezes, se cansam, ela conta. Quando isso acontece, ela senta em alguma calçada perto da avó por alguns minutos, mas logo sai de novo para vender mais doces. Além do cansaço, Joana lida com o medo das ruas e de “gente mau”. “Uma vez, eu estava andando, vendendo. Acho que ele (ela não diz quem) estava em uma lotérica e tinha um monte de gente na fila. Aí eu fui andando assim e depois veio um homem atrás de mim. Fui correndo e chamei ajuda, e minha avó chamou a polícia”, relata a menina.
Não é difícil ver crianças e adolescentes trabalhando nas cidades brasileiras. Muitas delas estão vendendo doces, salgados ou simplesmente pedindo ajuda para a renda de casa. Na Rodoviária do Plano Piloto, região central de Brasília, a menos de três quilômetros da Praça dos Três Poderes, Bruna*, de 12 anos, ajuda a mãe a vender jujubas. O pai também fica por ali, vendendo doces.
A mãe da menina, de 37 anos, detalha as dificuldades para manter os quatro filhos. Ela conta que, às vezes, precisa levar Bruna para ajudar no trabalho. A menina diz gostar de ficar com a mãe, mas prefere estudar e ir para a escola. Um dos irmãos, hoje com 20 anos, deixou de estudar durante a pandemia e não voltou. “Ele disse que não queria mais estudar on-line, e depois não voltou. Hoje, procura emprego, mas está difícil”, conta a mãe.
No auge da pandemia, em uma casa na periferia de Brasília que abrigava 15 pessoas, sendo dez crianças, Kátia* se viu obrigada a levar dois dos netos, de 10 e 12 anos, para vigiar carros em um mercado. Havia urgência para conseguir dinheiro para a comida da família. Na época, as escolas suspenderam as aulas presenciais e, sem celular ou computador, os netos que tinham ensino on-line ficaram desassistidos. Uma vez por semana, a avó ia à escola buscar os deveres para evitar que os netos ficassem distantes do ambiente escolar, mas ela reconhece a defasagem no aprendizado.
“Sentia tristeza [ao ver os netos trabalhando]. Eles não merecem passar por isso. Eles não deveriam ter vindo comigo, porque não tinham culpa de nada. Quem tem que lutar para sustentar eles sou eu, e não eles lutar para sustentar a gente. É muito triste você ver uma criança pedindo”, lamenta Kátia.
Com o retorno das aulas presenciais, Kátia* passou a sair com os netos mais novos, fora da idade escolar, para pedir doações. Hoje, percebe que a falta de aulas presenciais e a necessidade de saírem para buscar sustento provocaram um atraso na educação, especialmente de um dos netos, hoje com 11 anos. “Parecia que ele nunca tinha ido à escola”, conta.
*Nomes fictícios em preservação às crianças e aos adolescentes.
A realidade de Joana, do irmão dela, de Marcos e de tantos outros que trabalham nas ruas não é isolada. Em 2019, 1,76 milhão de crianças e adolescentes entre 5 e 17 anos trabalhavam no Brasil, sendo a maior faixa (78,7%) de jovens entre 14 e 17 anos, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD Contínua), do IBGE.
O país vivencia um apagão de dados de trabalho infantil durante a pandemia de Covid-19. Também são poucas as estatísticas sobre os que abandonaram as salas de aula para trabalhar. Para conseguir entender parte do cenário atual, a Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança e do Adolescente elaborou um estudo com as taxas de ocupação de adolescentes com idade entre 14 e 17 anos, a partir de dados da PNAD.
O documento revela um aumento de 16,5% de jovens nesta faixa etária em situação de trabalho infantil, comparando dados de 2020 com 2021. Embora tenha ocorrido uma redução significativa do trabalho infantil nos últimos 30 anos — em 1990, mais de 8 milhões estavam em condições de trabalho infantil — , houve um retrocesso durante a pandemia, na avaliação de especialistas. Relatório de junho de 2021 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e do Fundo de Emergência Internacional das Nações Unidas para a Infância (Unicef) mostra que, pela primeira vez em duas décadas, o trabalho infantil aumentou em todo o mundo.
Especialistas indicam que a evasão escolar está ligada diretamente ao aumento do trabalho infantil. Dados da PNAD Contínua compilados pela organização Todos Pela Educação mostram que, no segundo trimestre de 2021, houve aumento de 171,1% de crianças e adolescentes entre 6 e 14 anos que deixaram as escolas no Brasil, em comparação com 2019. Também observou-se uma redução de 2,1% no número de jovens de 15 a 17 anos matriculados no ensino médio ou que finalizaram o ensino médio em 2021, em comparação com 2020, segundo o relatório da organização.
Em 2019, 90 mil crianças e adolescentes entre 6 e 14 anos estavam fora da escola, segundo dados do Todos Pela Educação e da PNAD Contínua. No ano passado, o número passou para, aproximadamente, 244 mil. Em termos relativos, o percentual de crianças e jovens nesta faixa etária que não estavam frequentando a escola no Brasil era de 0,3% em 2019 e passou para 1% em 2021, sendo a maior taxa observada nos últimos 6 anos.
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Gerente-executivo da Fundação Abrinq, Victor Graça detalha que o aumento no número de adolescentes entre 14 e 17 anos no trabalho infantil comprova as falhas no combate à prática durante a pandemia. Para reverter a situação, ele avalia, é preciso reforçar ações e políticas públicas, com transferência de renda e oportunidade de emprego à população adulta, para não ser necessário que a criança ou o adolescente trabalhe.
“[O trabalho infantil] Afeta a evasão escolar, porque, ou a criança não tem tempo, ou ela está muito cansada para ir à escola e fazer as atividades. Ela vai para a escola de manhã e trabalha à tarde e, no dia seguinte, está exausta. Isso acaba gerando a desistência ou um rendimento escolar muito afetado”, exemplifica Victor.
A falta de dados de trabalho infantil na faixa etária de 5 a 13 anos impede que o país tenha uma visão completa do cenário atual, na avaliação de Victor Graça. “A gente precisa cada vez mais desses dados do pós-pandemia para entender o que vem acontecendo”, explica. Com base nos dados oficiais e em levantamentos da Abrinq, o gerente-executivo da fundação acredita que o país tenha hoje mais de 2 milhões de crianças e adolescentes, entre 5 e 17 anos, no trabalho infantil.
Coordenadora nacional de Combate à Exploração do Trabalho da Criança e do Adolescente do Ministério Público do Trabalho (MPT), Ana Maria Villa Real afirma que “o cenário do trabalho infantil no Brasil é desesperador”. “O Brasil sempre teve uma tendência à redução, ainda que gradual e tímida. No entanto, agora, a gente segue a tendência da estagnação e provável aumento por causa do crescimento da pobreza”, avalia a procuradora.
A pobreza, segundo ela, é a causa imediata do problema. Estudo feito pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, divulgado no início deste mês, mostrou que a fome avançou no Brasil e hoje alcança 33,1 milhões de pessoas. A pandemia agravou a desigualdade, e o Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde (Cidacs/Fiocruz Bahia) elaborou um índice que mede os efeitos das desigualdades sociais em saúde. Conforme estudo, houve um aumento nas diferenças sociais entre as regiões Norte-Nordeste e Sul-Sudeste.
Gerente-executiva do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais (Ceipe) da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Tássia Cruz reforça a visão, frisando que existe uma relação clara entre evasão escolar e trabalho infantil, apesar de pontuar que este não é o único motivo que justifique o aumento do abandono escolar observado na pandemia. “A criança que trabalha tem uma tendência a eventualmente sair da escola, e sair da escola tem um efeito muito negativo no rendimento futuro, na possibilidade de crescimento profissional desse jovem”, explica.
Observa-se, segundo ela, que, neste pós-pandemia, a evasão escolar está se tornando maior para alunos cada vez mais jovens. Além do trabalho, explica a professora, há um desengajamento dessas crianças e desses adolescentes com a escola e com o aprendizado, ocasionado pela suspensão das aulas presenciais durante a pandemia. “Infelizmente, dados pós-pandemia mostram aumento da evasão, particularmente dos alunos mais novos, que é uma coisa que a gente estava superando e era um problema para alunos mais velhos. Agora está retomando com os mais novos”, complementa Tássia Cruz.
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Normalmente, os estudantes que abandonam a escola têm três razões principais: desinteresse, necessidade de entrar no mercado de trabalho ou gravidez, no caso das meninas. No entanto, a pandemia reforçou o cenário de saída de crianças e adolescentes mais vulneráveis do ambiente escolar. É o que explica Ivan Gontijo, coordenador de Políticas Educacionais do Todos Pela Educação.
“Na pandemia, as escolas foram fechadas, o ensino remoto não chegou para todos os estudantes e, quando chegou, estava muito frágil. Isso tornou a escola menos engajadora. Ao mesmo tempo, tivemos uma crise econômica gigantesca e muitas crianças saíram da escola para trabalhar e ajudar em casa. Isso fez com que os indicadores de evasão escolar aumentassem”, diz Ivan Gontijo.
Esse fenômeno poderá ter impacto profundo e de longa duração na economia brasileira, em cerca de 15 anos, segundo estimativa da Secretaria de Política Econômica (SPE) do Ministério da Economia. Segundo a pasta, o impacto será sentido no Produto Interno Bruto (PIB), que é a soma de todos os bens e riquezas produzidos no país, no aprendizado e produtividade do trabalho e no aumento na desigualdade social, já que o acesso ao ensino remoto, oferecido em substituição às aulas presenciais, é distinto, de acordo com as faixas de renda da população.
Dados do Censo Escolar 2021 revelam que a taxa média de abandono do ensino médio na rede pública foi de 5%, ante 2,3% em 2020. Na região Norte do país, 9,7% dos alunos deixaram a escola no ano passado, um contraste em relação aos dados dos estudantes matriculados em escolas particulares, que não registraram abandono.
Durante a pandemia de Covid-19, o número de alunos matriculados no ensino profissionalizante também caiu. Em 2020, 1.936.094 estudantes estavam no segmento. Em 2021, o número caiu para 1.892.458.
Os impactos da pandemia atingiram todos os níveis da educação, mas os estudantes mais pobres sofrem mais “A gente sabe que crianças que não estão na escola estão muito mais expostas a violações, a sofrer acidentes, ser cooptadas para o crime e ser vítimas de abusos sexuais. A escola acaba sendo esse lugar de proteção. Mas a educação é um desafio sistêmico, não é uma ou duas medidas que vão resolver esse problema no Brasil”, completa Ivan Gontijo.
Segundo o Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil, desde 2008, o trabalho infantil doméstico é uma das piores formas para crianças pela exposição a longas jornadas de trabalho, atividade noturna, esforços físicos intensos, isolamento, abusos físico, psicológico e sexual. Em todo o mundo, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) estima que 17,2 milhões de crianças entre 5 e 17 anos fazem trabalho doméstico, remunerado ou não. Em 94,2% dos casos, este trabalho é feito por meninas.
Agricultura, pecuária e exploração florestal também estão entre os piores tipos de trabalho infantil. No campo, crianças e adolescentes são responsáveis por plantios, direção de tratores, coleta de açaí e trabalho em manguezais. Atividades consideradas de alta periculosidade para adultos, para crianças e adolescentes têm consequências devastadoras, segundo especialistas.
Levantamento do Ministério do Trabalho revela as piores formas de trabalho infantil encontradas durante as fiscalizações realizadas no Brasil. A lista é liderada por comércio ambulante, guarda de carros, guardas mirins, guias turísticos, transporte de pessoas ou animais.
Para combater a situação, foram realizadas 4.127 fiscalizações desde 2017. A maior quantidade foi em 2021, com 1.104 ações. Este ano, até abril, o Ministério do Trabalho detalha ter realizado a fiscalização em 417 lugares.
Durante as ações realizadas desde 2017, 8.946 crianças ou adolescentes foram encontrados em situação de trabalho infantil no Brasil. O ano mais crítico foi 2017, com 2.081 registros. Este ano, até abril, 730 crianças e adolescentes já haviam sido resgatadas do trabalho infantil, segundo dados compilados pelo Ministério do Trabalho.
Gerente-executivo da Fundação Abrinq, Victor Graça explica que crianças de 5 a 13 anos são vítimas de trabalho infantil principalmente em área rural. No caso de adolescentes de 14 a 17 anos, estão mais em áreas urbanas, em pequenos negócios. Em ambas as situações, pontua o gerente, os casos ficam pulverizados pelo país, o que torna ainda mais difícil a fiscalização.
O perfil da criança vítima do trabalho infantil, segundo ele, é o mesmo de outros tipos de violação, sendo em sua maioria adolescentes do sexo masculino, negros e de baixa renda. Os prejuízos são carregados por essas crianças e adolescentes para o resto da vida. Graça ressalta que estudos comprovam que, quanto mais anos de estudo um jovem tiver, mais chance ele terá de ter uma renda maior no futuro. Tássia Cruz, professora da FGV, também frisa que a escolaridade é o que mais importa para a melhoria de um salário. “O jovem que termina a educação básica vai ter um rendimento salarial muito maior do que o jovem que não termina”, resume Tássia.
Na tentativa de reverter o cenário de evasão escolar reforçado pela pandemia da Covid-19, algumas iniciativas no país tentam buscar crianças e jovens de volta às escolas. É o caso do trabalho feito por professores do Centro de Ensino Fundamental (CEF) 20, em Ceilândia, região administrativa do DF, onde também funciona a Educação de Jovens e Adultos (EJA), com alunos a partir dos 15 anos.
Uma das professoras que atua na busca dos estudantes, Djane Araújo diz que a unidade percebeu a redução do público nesta faixa etária com o retorno das aulas presenciais e iniciou um trabalho de ligar para os alunos e ver porque não estavam frequentando a instituição. O principal motivo relatado, segundo ela, é a falta de tempo para os estudos. “O trabalho foi uma das primeiras causas de não retorno”, explica.
Neste semestre, observando que muitos alunos de fato não retornariam, a escola decidiu buscar outros estudantes. Um grupo de professores passou a entregar panfletos em regiões movimentadas de Ceilândia e até a segurar cartazes nos semáforos, chamando mais estudantes para a escola. O resultado positivo, segundo Djane, já foi percebido, com alguns jovens e adultos procurando a unidade escolar, e outras escolas, para se informar sobre as matrículas para o segundo semestre.
Victor Graça ressalta que, além do obstáculo do trabalho infantil, o afastamento das crianças e adolescentes do ambiente escolar durante a pandemia gerou uma falta de interesse. Por isso, segundo ele, é importante um trabalho para buscar de volta esses estudantes, como fazem os professores do CEF 20, em Ceilândia.
“Muitos lugares ficaram sem aula presencial e já foi um problema. Em alguns lugares também não teve aula on-line, por falta de computador ou internet. Aí, dois anos depois, eu preciso de um incentivo [ao aluno]. Essa busca ativa é um trabalho de todo mundo”, detalha o gerente-executivo da Abrinq.
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Vítima de trabalho infantil, Felipe Caetano, hoje com 20 anos, trabalhou dos 8 aos 14 anos nas praias de Aquiraz, município no litoral do Ceará com 80 mil habitantes. Foi durante uma das oficinas de um grupo de adolescentes na escola que ele percebeu a situação de violação de direitos em que se encontrava. “Uma das oficinas era justamente sobre o trabalho infantil. Eu trabalhava como garçom na praia e chegava muito exausto na escola, então, ali eu percebi que era uma criança com direitos violados”, relembra.
Para sair da situação, Felipe precisou antes conscientizar a própria família. “Essa primeira conversa foi com a minha mãe e foi complicado porque ela também trabalhou na infância e só estudou até o 4º ano do ensino fundamental. Para ela, se eu estivesse trabalhando, ela estava satisfeita. Foi um período difícil, porque eu ouvia coisas como ‘não quer trabalhar para virar vagabundo’, mas, com o passar do tempo, minha mãe foi percebendo que a educação era o caminho para a profissionalização, para ocupar postos melhores de trabalho. Hoje ela é uma aliada e tem outra visão sobre o trabalho infantil”, conta.
Atualmente, Felipe estuda direito na Universidade Federal do Ceará (UFC), abraçou a causa do combate ao trabalho infantil e viaja o país em ações, projetos e pesquisas sobre o tema. Ainda adolescente, fundou o Comitê Nacional de Adolescentes na Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (Conapeti). Na universidade, iniciou o grupo de pesquisa e extensão do Núcleo de Estudos Aplicados Direitos, Infância e Justiça.
O Estatudo da Criança e do Adolescente e a Constituição proíbem o trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de 18 e qualquer trabalho a menores de 16 anos, exceto na condição de aprendiz a partir de 14 anos.
A Consolidação das Leis do Trabalho prevê multa para quem não cumprir os deveres em relação aos menores. Professora de Estatuto da Criança e Adolescente e mestre em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Ana Carolina Victalino explica que pessoas ou empresas “que empregam crianças são multadas ou, eventualmente, têm os estabelecimentos fechados”.
“Já os pais também podem, a depender da situação, até perder a guarda da criança. Mas essa é uma questão muito sensível, porque vivemos em um tempo em que muitas famílias estão em situação de pobreza”, lembra.
Para a especialista, em alguns casos, como os que ocorrem em ambiente familiar, a orientação e o aconselhamento são mais eficazes do que a punição. “São situações diferentes. Uma coisa é quando uma criança é explorada por um empregador, porque essa empresa se utiliza de uma mão de obra mais barata. Outra coisa é quando a criança está com os pais vendendo algo na rua ou trabalhando na agricultura. Nesse caso, precisa existir um trabalho de convencimento sobre o cuidado e a educação da criança”, destaca.
A idade mínima para trabalhar no Brasil é 16 anos e há uma série de restrições. Entre 14 e 15 anos, o jovem só pode ser ocupado na condição de aprendiz. Nesse caso, os adolescentes têm direito a salário, jornada máxima de até seis horas para o jovem que ainda não concluiu o ensino fundamental, vale transporte, férias, 13º salário e recolhimento do FGTS.
O Brasil tem um plano de erradicação do trabalho infantil construído dentro da Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil (Conaeti), do Ministério do Trabalho, no entanto, a comissão foi extinta em 2019, e só foi reativada após pressões, um ano e dez meses depois. Atualmente, os trabalhos caminham lentamente e com uma configuração que não inclui como titular o Ministério Público do Trabalho (MPT) nem entidades da sociedade civil, como o Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI) e o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda).
Para especialistas, é um sinal de que a prevenção e erradicação do trabalho infantil deixaram de ser prioridades para o Estado. O Brasil não cumpriu o objetivo de erradicar o trabalho infantil até 2016. Apesar de se identificar como uma pessoa otimista, Victor Graça, da Abrinq, não acredita que o país vai cumprir o compromisso assumido na Agenda 2030, da Organização das Nações Unidas (ONU), de acabar com o trabalho infantil até 2025.
“Se começar no governo seguinte, é muito difícil, até pelas circunstâncias de que o trabalho infantil está muito pulverizado, espalhado em vários tipos de agricultura, em diferentes lugares do Brasil. Para acabar isso, precisa de uma política pública e um pouco mais de tempo”, diz o gerente da Abrinq.
Coordenadora nacional de Combate à Exploração do Trabalho da Criança e do Adolescente do Ministério Público do Trabalho (MPT), Ana Maria Villa Real afirma que é preciso “vontade política, aumento da proteção social e promoção do trabalho decente” para erradicar o trabalho infantil. “Não adianta tentar combater o trabalho infantil sem melhorar as condições de trabalho dos adulto. É preciso investir em educação integral e na ampliação da política de creches. É uma série de medidas que precisam ser adotadas para fazer esse enfrentamento real, não retórico”, destaca a procuradora.
Um dos mais recentes relatórios da Organização Internacional do Trabalho (OIT), “Trabalho infantil: estimativas globais 2020, tendências e caminho a seguir”, atualizado em agosto do ano passado, indica um aumento de 8,4 milhões de casos no mundo nos últimos quatro anos. Em 2020, eram 160 milhões de registros, sendo 97 milhões de meninos e 63 milhões de meninas.
A OIT destaca que “o progresso para acabar com o trabalho infantil está estagnado pela primeira vez em 20 anos, revertendo a tendência anterior de queda, que registrou uma diminuição de 94 milhões no trabalho infantil entre 2000 e 2016”. A África Subsaariana apresenta o quadro mais grave, com aproximadamente 86 milhões de crianças ou adolescentes submetidos ao trabalho infantil.
Ainda segundo a organização, o grupo entre 5 e 11 anos representa a metade dos casos registrados no mundo. Já os que têm entre 5 e 17 anos estão realizando os trabalhos mais perigosos. Os dados, nesse último caso, aumentaram de 65 milhões, em 2016, para 79 milhões.
O documento da organização ressalta que a falta de ações eficazes durante a pandemia de Covid pode ter agravado ainda mais a situação do trabalho infantil no mundo. A estimativa da OIT é de que o número de crianças e adolescentes trabalhando ilegalmente chegue a 168,9 milhões este ano.
Ao avaliar o cenário mundial, a OIT revela que, em São Paulo, o trabalho infantil teve aumento de 26%, entre maio e julho de 2020, com base na avaliação de 52,7 mil famílias assistidas pelo Unicef. O fechamento de escolas durante a pandemia de Covid é apontado como um “impulsionador” para o trabalho infantil.
O Ministério Público do Trabalho atua no tema por meio da Coordenadoria Nacional de Combate à Exploração do Trabalho da Criança e do Adolescente (Coordinfância), criada em novembro de 2000. A área atua de modo repressivo, buscando acabar com as formas de trabalho infantil, e promove ações preventivas.
Com o tema “Proteção social para acabar com o trabalho infantil”, a campanha contra a exploração de crianças e adolescentes feita pelo órgão em 2022 tenta sensibilizar a sociedade para a necessidade urgente de proteção da infância e a ampliação dos investimentos em políticas sociais para reduzir a pobreza e a vulnerabilidade socioeconômica que atingem as crianças brasileiras.
A campanha de 2022 foi ilustrada com as imagens da animação “O menino e o mundo”, mundialmente conhecida após ser indicada ao Oscar na categoria de melhor longa de animação.
Qual é o cenário do trabalho infantil atualmente? A pandemia acentuou esse problema no país?
O trabalho infantil hoje segue uma tendência de aumento por causa da pandemia e do aumento do desemprego. Ainda não temos dados oficiais, mas a gente consegue visualizar isso nas ruas. O trabalho infantil é causa e consequência da pobreza. Temos 30 milhões de pessoas passando fome, e o trabalho infantil tem uma ligação muito forte com a fome. A evasão escolar também tem relação com o afastamento dos adolescentes da escola que migraram para o trabalho infantil. Os relatórios mundiais apontam que se os governos, o que inclui o Brasil, não adotarem medidas de mitigação para frear o aumento da vulnerabilidade socioecômica vai haver uma explosão de trabalho infantil no mundo.
Como é o cenário do trabalho infantil no Brasil?
O Brasil sempre teve uma tendência à redução, ainda que gradual e tímida. No entanto, essa tendência no mundo está estagnada. Não temos dados de 2020 e 2021 sobre isso, mas a tendência é de estagnação, e, provavelmente, de aumento por causa do aumento da pobreza. Então, o cenário do trabalho infantil no Brasil é desesperador, de aumento das violações de direitos e de estagnação das ações. O Brasil tem um plano de combate ao trabalho infantil, mas está paralisado, primeiro houve a extinção da Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil, que é incumbida de fazer a gestão e monitoramento desse plano, mas, em abril de 2019, várias comissões e órgãos colegiados foram extintos. A comissão foi reinstituída em dezembro de 2020, depois de uma movimentação feita inclusive junto à OIT, e a primeira reunião aconteceu em setembro de 2021. De lá para cá essas reuniões são totalmente ineficazes, ficam se discutindo coisas que não têm pertinência e concretude e o plano continua paralisado. Os esforços continuam paralisados, e a gente tem visto aumento de evasão escolar ligado ao trabalho infantil.
Qual é o perfil da criança que está no trabalho infantil no Brasil?
É a criança pobre, negra, periférica. Acontece que aquela criança que fica em situação de trabalho infantil tem um rendimento escolar baixo, tende a sair da escola mais cedo, a ter escolarização baixa, a se empregar em empregos mal qualificados e mal remunerados, vai constituir uma família também de baixa renda e colocar seus filhos em situação de trabalho infantil, muitas vezes. É o que a gente chama de perpetuar o ciclo intergeracional do trabalho infantil e da pobreza, porque só a educação quebra o ciclo da pobreza e do trabalho infantil.
Onde a criança brasileira está mais vulnerável ao trabalho infantil?
O trabalho infantil no Brasil, aquele que a gente vê, é predominantemente urbano, mas o trabalho doméstico infantil, por exemplo, não é visível porque está dentro de uma residência. O trabalho no campo também é muito invisível, mas muito comum em razão da agricultura em regime de economia familiar. A gente tem várias cadeias produtivas que se valem desses pequenos agricultores que trabalham em regime de economia familiar. Temos o tabaco, o café e o açaí, por exemplo. No trabalho infantil urbano, que a criança trabalha na rua, elas estão sujeitas a atropelamentos, a serem cooptadas pelo tráfico de drogas e exploração sexual. No campo, a criança também fica em situação de vulnerabilidade intensa, porque o trabalho no campo é perigoso, tem aplicação de agrotóxicos, por exemplo. São vulnerabilidades diferentes, mas são grandes vulnerabilidades.
Como é a atuação do MPT no combate ao trabalho infantil?
O MPT tem uma atuação repressiva. Então, recebendo denúncias nós vamos apurar e processar quem está explorando essa criança, vamos verificar o que está acontecendo naquela situação, se a criança está sendo explorada por alguém ou se a criança está naquela situação porque a família vive em situação de vulnerabilidade, se tem alguém efetivamente explorando aquela criança. A gente faz um trabalho de indução de políticas públicas, porque se tem uma situação de trabalho infantil em determinado município é porque a política pública não está funcionando. A gente precisa tirar aquela família da situação de vulnerabilidade socioeconômica com políticas de promoção social para que a criança e o adolescente permaneçam na escola.
O mito de que o trabalho dignifica o homem e a exaltação ao trabalho dificulta o combate ao trabalho infantil?
Somos uma sociedade racista e classista. O trabalho infantil no Brasil tem cor: 66% é negro. E a sociedade brasileira enxerga como essa situação? Como se fosse melhor trabalhar do que roubar, como se fossem só esses dois caminhos. Só que os filhos de famílias de classe média têm o caminho de ir para a escola, ter lazer, fazer esportes, estudar uma segunda língua. Esse é o caminho que qualquer criança e adolescente tem direito, e é direito constitucional. Trabalho infantil mata, trabalhar não é do mundo da criança e do adolescente, que são pessoas com peculiares condições de desenvolvimento. As campanhas seguem para sensibilizar e informar a sociedade da importância de se garantir infâncias iguais em todo o Brasil. Infância não pode ser privilégio, tem que ser direito. Nossos representantes, tanto no Executivo, quanto no parlamento, precisam ter esse compromisso com a infância de um modo geral, que não seja só retórico, mas efetivo.
Nos últimos anos, houve algum avanço no combate ao trabalho infantil? Em em que precisa avançar ainda?
O Brasil avançou significativamente de 92 a 2015, conseguindo reduzir mais de 60% do trabalho infantil. Foram retiradas cerca de 6 milhões de crianças desta situação. Isso se deu por uma decisão política de erradicar o trabalho infantil. Então foi melhoria da proteção social, a lei da aprendizagem permitiu o ingresso de adolescentes ao mercado de trabalho de forma protegida, teve qualificação profissional, fiscalização do trabalho. O próprio MPT criou uma coordenadoria e começou a se engajar nesse tema, e a sociedade civil também tem e teve um papel muito importante ainda que silenciado no momento, então foi uma conversão de fatores, a melhoria da vida das pessoas, da renda e do poder aquisitivo. A partir de 2015, a redução aconteceu de forma lenta. É preciso vontade política, aumento da proteção social, promoção do trabalho decente. Não adianta tentar combater o trabalho infantil sem melhorar as condições de trabalho dos adultos, a educação integral. O Brasil precisa atingir a meta de implementar as escolas de educação integral, precisa ampliar a política de creches. É uma série de medidas que precisam ser adotadas para fazer esse enfrentamento real, não retórico.
Denúncias envolvendo trabalho infantil podem ser feitas por meio do canal do MPT, de forma anônimia, pelo Disque 100 e também no Conselho Tutelar dos municípios. No aplicativo Proteja Brasil é possível localizar órgãos de proteção em todos os estados e no Distrito Federal.
Pelo site do Ministério Público do Trabalho
Pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos