O tiro que matou Laudemir Souza Fernandes, de 46 anos, na manhã de 11 de agosto em Belo Horizonte, não foi apenas o resultado de uma discussão de trânsito. Foi a consequência trágica de um sistema que permite motoristas dirigirem por anos sem qualquer verificação de sua saúde mental. René da Silva Nogueira Jr., empresário de 47 anos que confessou ter atirado no gari após negar o crime por dias, provavelmente não passou por uma avaliação psicológica voltada para o trânsito desde que tirou sua primeira habilitação. Décadas se passaram. Seus níveis de estresse evoluíram, sua capacidade de controlar impulsos se deteriorou, mas ele ainda é considerado apto a dirigir segundo a legislação de trânsito atual.
O resultado? Um homem armado, descontrolado, que transformou um simples encontro no trânsito em execução sumária de um trabalhador que apenas fazia seu serviço. “Quando analiso o caso desse cidadão, vejo claramente os sinais que uma avaliação psicológica recente teria detectado. A forma como ele reagiu a uma situação absolutamente comum no trânsito, sacando uma arma, fazendo ameaças e atirando contra o Laudemir, revela déficits graves de controle emocional, impulsividade extrema e total desrespeito às normas sociais. Características que tornam qualquer pessoa inapta para dirigir”, afirma Adalgisa Lopes, psicóloga especialista em trânsito e presidente da Associação das Clínicas de Trânsito de Minas Gerais (Actrans-MG).
As testemunhas relataram a frieza com que o empresário executou sua ameaça. Após intimidar a motorista do caminhão de lixo dizendo “se você esbarrar no meu carro eu vou dar um tiro na sua cara”, ele desceu do veículo armado e, mesmo com colegas de Laudemir tentando acalmar a situação, disparou contra o gari. “Esse não foi um ato impulsivo isolado. Foi o ápice de um padrão comportamental perigoso que vinha se desenvolvendo há anos. Ele demonstrou agressividade premeditada, baixíssima tolerância à frustração e completa ausência de controle inibitório – exatamente os fatores que avaliamos para determinar se alguém está apto a dirigir”, comenta a psicóloga especialista em trânsito, Kelly Bessa.
O sistema falhou com Laudemir
Laudemir trabalhava como gari há mais de duas décadas. Pai de família, conhecido pela dedicação ao trabalho, ele representava milhões de brasileiros que dependem das ruas para sobreviver e que ficam expostos diariamente a motoristas violentos e descontrolados. “A tragédia de Laudemir expõe uma falha sistêmica grave”, destaca Adalgisa Lopes. “Permitimos que pessoas dirijam por décadas sem verificar se ainda possuem as condições psicológicas mínimas para isso. É como se déssemos uma arma a alguém e nunca mais verificássemos se essa pessoa ainda sabe usá-la com responsabilidade”, afirma a psicóloga Giovanna Varoni, diretora da Actrans-MG.
A legislação atual permite que motoristas renovem suas habilitações sem qualquer avaliação psicológica por períodos que podem chegar a uma década. Apenas motoristas profissionais precisam renovar a avaliação psicológica quando renovam a CNH. Ou seja, para os motoristas comuns, os laudos psicológicos são vitalícios. Nesse tempo, uma pessoa pode desenvolver depressão, transtornos de ansiedade, dependência química, traços de personalidade antissocial e continuar dirigindo normalmente.
As avaliações psicológicas para condutores são capazes de detectar déficits de controle emocional que levam a explosões de raiva; impulsividade excessiva; baixa tolerância à frustração; atenção; memória; desrespeito sistemático a regras e normas sociais e tendências agressivas que colocam outros em risco. “O caso René-Laudemir não é exceção, é regra. Diariamente vemos motoristas descontrolados, agressivos, que usam seus veículos como armas. A diferença é que nem todos portam armas de fogo. Mas todos portam armas de uma tonelada capazes de matar”, afirma Adalgisa Lopes.
Brasil: laboratório de violência no trânsito
Os números brasileiros são aterrorizantes. Cerca de 90% dos acidentes de trânsito têm origem no fator humano, como descontrole emocional, impulsividade, agressividade, desatenção e imprudência, exatamente os fatores que uma avaliação psicológica identifica. “Estamos permitindo que bombas-relógio circulem livremente pelas nossas ruas”, alerta Giovanna Varoni. “Pessoas com sérios problemas de controle emocional, que veem o trânsito como campo de batalha pessoal, que transformam qualquer contrariedade em motivo para violência. E o pior: sabemos como identificar esses perfis, mas escolhemos não fazer.”
A proposta das especialistas é simples e salvadora: avaliação psicológica obrigatória a cada renovação de CNH. “Não estamos falando de criar barreiras, mas de salvar vidas. Uma avaliação que verificasse controle emocional, impulsividade, tolerância à frustração e respeito às normas teria identificado René como inapto para dirigir. E quando alguém é considerado inapto, é encaminhado para tratamento com um especialista e só depois disso consegue reaver a concessão para dirigir”, detalha Adalgisa.
Custo da negligência
Laudemir morreu porque nossa sociedade escolhe economizar na prevenção e pagar caro na tragédia. Uma avaliação psicológica custa por volta de R$ 200. O funeral de Laudemir, o trauma de sua família, a perda de força produtiva, os custos judiciais do processo e a prisão de René custam milhões. Sem contar o valor humano, que é incalculável.
O empresário, que agora responde por homicídio qualificado, representa milhares de motoristas brasileiros que circulam com perfis psicológicos incompatíveis com a direção segura. “Quantos outros estão por aí, esperando apenas o gatilho certo para explodir?”, questiona Adalgisa